composição. decomposição. composição.

anticomputador sentimental
2 min readMar 8, 2023

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o cheiro de um paralelismo. algo sobre dias chuvosos. o silêncio e a existência.

o aroma de uma existência paralela me invade. o sentimento de uma realidade alheia; não sou quem sou, não vivo onde vivo, posso ser livre e jovem. mergulho neste sentimento para sempre. posso dizer que sempre estive aqui, e nunca estou. no silêncio, tudo me parece desconhecido. a mobília cuidadosamente decorada da casa já não me pertence, esses rostos, essas vozes. nunca poderia reconhecer nada disso que se instala bruscamente ao meu redor. eu já não pertenço a mim mesma. sou encarregada de cuidar e conviver em um corpo desconhecido, uma materialização sem alma, uma exposição social. enquanto tudo faz parte de uma existência paralela, sinto o meu espírito correr incessantemente e tentar escapar pelos limites do meu corpo.

no silêncio, sinto o peso de milhares de existências caindo sobre mim. todas essas almas, precursoras e póstumas à minha. almas que viveram como eu vivo, sentiram como eu sinto, e criaram como eu crio. me conecto profundamente com todas as minhas existências. talvez por isso eu tenha uma paixão e sinta um conforto imensurável por objetos e locações antigas, aquilo que é morto, putrefato. cheiros capazes de condensar uma existência, tons terrosos reconfortantes.

existe uma contradição porém, no meu cerne. em ser completamente apaixonada pelo morto, e também pelo vivo. admirar a natureza em sua vida, observar o nascimento e o apogeu das flores, e então me apossar da sua morte e decomposição. ao se decomporem, flores exalam um perfume agradável e nunca antes tão apurado. em sua morte, flores exalam vida. flores, unica e originalmente belas, as desejo em todo o meu ser. e talvez assim como as flores, após a minha morte, posso exalar vida. após a turbulenta onda de abstratização e paralelismo que me assola, me encontro e vivo novamente. e então a turbulência. e então a paz. as tempestades irão cessar e retornar. molhar e secar. criar e ceifar existências em um ciclo eterno, e sempre haverá aquela que se sentirá como eu.

quando eu finalmente decidi dormir, a chuva foi embora. eu sempre senti que o universo possui uma certa conexão irônica comigo.

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